quinta-feira, 26 de junho de 2014

Continuação - capítulo I, Renascendo

-Bom dia! Como está hoje, meu anjinho?
Meu segundo dia pós-coma começava assim, com o bom dia entusiasmado e alegre da minha mãe. Mamãe era linda, tinha cabelos dourados e curtos na altura do final do pescoço. Rosto fino, era um pouco baixa e nem gorda nem magra. O corpo adequado para seu tamanho e quadril avantajado. Seus olhos eram castanhos e seu sorriso era um porto seguro. Seus pais, meu avós, eram muito ricos e sua família muito respeitada. Vovô era dono de uma grande exportadora de vinhos, negócio herdado por gerações da família Almeida Albuquerque.
 -Bom dia, mãe. Estou melhor e você? - Eu ainda estava um pouco zonza e com dor de cabeça, mas meu corpo doía um pouco menos.
- Estou aqui, minha filha. - Juro! Naquele momento eu não consegui entender se essa afirmação de mamãe era um pesar ou um conforto para mim. Mas creio que tenha sido os dois.
- Hum. Você passou a noite aqui?
-Sim, filha. Mas não se preocupe, essa cama é bem confortável e eu já me acostumei. - Esse tipo de diálogo me fazia pensar quanto tempo eu fiquei "fora do ar", mas o esforço era inútil pois não conseguia me lembrar de nada.
 O quarto em que acordei naquele dia era bem maior, mais caseiro e um pouco menos hospitalizado. Tinha dois leitos: um para o paciente com todos os adornos hospitalares; outro para o acompanhante, bem simples. Uma tevê no alto da parede num daqueles suportes, uma porta para o que parecia ser um banheiro e uma porta de saída. Na frente da  minha cama havia uma espécie de prateleira onde havia vasos de flores, bexigas, ursinhos, pacotes de presente, cartas e caixas de bombom. E à minha esquerda tinha uma janela bem grande com o mundo todo lá fora.
 Vendo todos aqueles presentes que me levaram, imaginei que estava ali há bastante tempo para que as pessoas além da minha família soubessem de tudo. Então comecei o questionário desenfreado dos porquês.
- Mãe, quanto tempo eu fiquei fora do ar?
- Nove semanas, Ash. Nove longas e infindáveis semanas. - "Ash" era meu apelido porque eu não gostava de ser chamada de Nat, visto que Nat era a abreviação para Natália também e na escola havia três delas na minha sala. Ficaria muito confuso ter mais uma Nat e ela nem ser Natália.
 -Nossa, nove semanas é tempo demais! São dois meses. Mas o que exatamente me aconteceu, mãe? - Naquele momento ela arrumava as coisas de cima da prateleira e se virou para mim como se eu tivesse cometido um crime. Os olhos arregalados e a expressão assustada. Então respondeu gaguejando:
-Bom... é que você... tinha uma festa de formatura dos seus amigos e você foi. Na volta o carro que você estava voltando capotou, daí você sabe, né? Você bateu com a cabeça no painel do carro, mas graças a Deus estava de cinto e o pior não aconteceu. Só que houve uma lesão no seu cérebro por conta do impacto da pancada...
 Naquele momento a voz da mamãe foi ficando cada vez mais longe enquanto uma cena se montava ao meu redor. O interior de um carro, vozes gritando e cantando, música alta, eu estava na frente ao lado do motorista. E uma voz falava: "Jamais vou esquecer o que fez por mim, Ash!". De repente eu voltei para a realidade com um grito da minha mãe:
-ASH! Responde pra mim, filha! Por Deus, o que houve?
-Não sei, mãe. Eu tive um sonho e eu estava dentro de um carro. Era noite e uma voz me disse que não ia esquecer o que eu fiz por ela. Daí acordei com seu grito.
-Que sonho, menina? Você tá aí sentada e me olhava fixamente. Como podia estar sonhando? - Fiquei muito confusa naquele momento porque eu tive aquele sonho e não estava inventando nada daquilo. Mas tinha certeza que mamãe também não estava brincando ao dizer que eu permaneci acordada, fiquei bastante assustada e confusa.

Capítulo I - Renascendo.


 Abrir os olhos era como nascer de novo. Ver todo mundo ao meu redor me olhando curiosamente e chorando era desesperador. Aquele quarto cheirando a hospital, aquela cama reclinada, médicos e enfermeiros me olhando curiosos. E aquele bipe assustador do monitor cardíaco ao meu lado me dava calafrios.O que eu estava fazendo ali? Quanto tempo eu havia perdido? O que aconteceu?
 Meu corpo todo doia, meus olhos estavam pesados e minha cabeça parecia querer explodir a qualquer momento. A sensação de voltar de um coma não era das melhores e o mais desesperador era estar perdida no tempo e no espaço, tentar se lembrar do que aconteceu e tudo que a memória conseguia recuperar era um vazio. Deus do céu, que angústia!E meu primeiro diálogo pós-coma foi com meu médico:
- Onde estou? - perguntei aflita, mas retoricamente pois tinha plena consciência de que aquilo era um quarto de hospital e já podia imaginar o tamanho da catástrofe para que eu estivesse ali.
- Aqui é o hospital Nossa Senhora das Graças, querida. Este é o seu quarto.- Doutor Rafael era um jovem médico, bonito, gentil e tímido. Alto e moreno. Sorriso largo, olhos pretos e fala mansa. Tinha por volta de 31 anos.
-Hum. E o que aconteceu comigo? Como vim parar aqui? - Eu queria respostas e eles também, mas eles queriam que eu respondesse outras coisas. Estava desesperada para saber o que aconteceu.
- Calma, querida. - e olhando para meus pais, continuou - é um bom sinal essa inquietação dela. Sinal de que se lembra de quem é e que esteve "fora do ar" esse tempo todo. - E voltando-se para mim de novo, prosseguiu - Lembra-se do seu nome, meu bem?
-Natasha Albuquerque De Angelis. - Ele riu.
- Muito bem, querida. Agora diga-me quantos dedos tenho aqui? - E mostrou-me o número dois feito com o anelar e o indicador.
- Aí nas suas mãos o senhor tem dez dedos, mas os que está me mostrando são apenas dois. - Todos riram e minha mãe chorava tanto que parecia estar no meu funeral e não num "despertar do coma da filha mais velha".
-Muito bem, senhorita! Agora, com o tempo, as sessões de fisioterapia e a ajuda da T.O. você voltará ao normal rapidinho. Mas diga-me uma coisa, e as pernas?
-O que tem elas, doutor? Vamos ter de tirá-las? Não conseguiu salvá-las? - Ele riu e continuou:
-Acalme-se, querida. Quero saber se sente suas pernas. Consegue mexê-las? - Naquele momento um desespero tomou conta de mim. E se não conseguisse? Ficar paraplégica não me parecia uma coisa que eu aceitaria facilmente, ainda mais gostando de festas e de me divertir como eu sempre gostei. O medo era tamanho que logo um gelo subiu pelo meu estômago, vindo a se transformar em um nó que apertava minha garganta. Um silêncio tomou conta do quarto e os rostos felizes agora pareciam tensos e partilhando do mesmo medo que eu.
- E então, querida? ... - Criei coragem e vi que conseguia mexê-las. Foi um grande alívio.
- Sim, posso mexer as pernas! Graças a Deus!
- Querida, agora terá de ter pasciência porque começará a reaprender tudo o que já sabia. E aos poucos a memória irá voltando. - E voltando-se para os demais, disse - Deixemos que ela descanse porque logo voltará a ficar inconsciente. Não se assustem porque é perfeitamente normal. Um paciente camatoso, nos primeiros dias, vai permanecendo acordado gradativamente. Vamos sair.
 Então fiquei sozinha e me esforçava para lembrar o que aconteceu para que eu estivesse ali, mas nada fazia sentido. Sabia quem eram meus pais porque eram meus pais, mas não conseguia lembrar de nada antes daquele momento. Sabia que aquele garoto no quarto era meu irmão mais novo, mas não me lembrava sequer de um momento com ele, nenhuma brincadeira ou mesmo uma briga. Comecei a ficar aflita e não me lembro de mais nada depois disso até o dia seguinte.